17.1.08

A Fallen "Hoshi"

A noite é de um tom azul-escuro incrível. Um azul-escuro que não deixa ver mais nada. Deitada no chão olho para o céu azul da noite, manchado de nuvens cinzentas aqui e ali.

Fecho os olhos e tudo o que vejo é um corredor, branco e estéril, um cheiro fétido paira no ar. Eu conheço bem este sítio. Ás vezes desejava não conhecer, mas faz literalmente parte de toda a minha vida.

Olho à minha volta, tudo parece um sonho neste corredor. Um sonho inacabado, como uma história que tem uma página em branco, mas este sonho, este tem a página mais negra da história para muitos.

Abro os olhos e volto a fechar permitindo que uma pequena lágrima solitária caísse. São sítios como este que me lembram de certas histórias, de certas pessoas e momentos. São sítios como este que me lembram do que vou contar…

Conheci em tempos uma pequena rapariga chamada Hoshiko Yukimura, que vivia na ilha Hokkaidō no Japão, mais especificamente em Nemuro perto do Lago Furen. Quando a vi pela primeira vez nunca pensei que o seu passado tivesse sido tão obscuro e estranho, pois ela parecia a pessoa mais feliz enquanto patinava naquele lago. Era o pico do Inverno, estava um frio cortante que tornava difícil a respiração, e eu simplesmente sentei-me na neve a observar todo o ambiente e principalmente aquela rapariga misteriosa que cuja aura parecia querer transmitir algo enquanto patinava ali, sozinha, a contrariar as ameaças do frio…

Hoshiko nascera em 1855 antes da Restauração Meiji e como tal nada impedira a sua mãe de a vender a uma das casas de chá da localidade para ganhar dinheiro. Ninguém diria que uma “estrela” como Hoshiko teria como futuro ser uma gueixa, deitando por terra todos os seus sonhos e esperanças. Depois de sofrer durante anos e anos tanto como maiko como mais tarde como gueixa, o seu “danna” decidiu que Hoshiko não preenchia os seus requisitos e abandonou-a, numa rua da grande cidade da ilha: Sapporo.

Hoshiko começava mesmo a acreditar que ela não era ninguém no mundo, que ninguém nunca tinha realmente reparado nela, que de facto ninguém a amava e que nunca viria a amar. Ela começou a viver na rua, vivendo do que por vezes roubava, sendo ainda muitas vezes repreendida tanto pela policia local como mesmo pela sociedade restrita e conservadora que acreditava que a rua, as danças eróticas e o roubo por uma menina daquela idade era uma aberração.

Há noite refugiava-se perto das condutas de ar dos restaurantes, que a mantinham mais ou menos quente e aconchegada naquele que parecia ser o Inverno mais longo da sua vida. Passava as suas noites a chorar, a sentir-se rejeitada pelo mundo e a chorar novamente, até adormecer, no silêncio da sua vida, um silêncio tão grande que era capaz de calar o som ruidoso dos carros que passavam na rua, e das pessoas que saltitavam para um lado e para o outro na noite.

Hoshiko era uma pequena estrela caída e suja, da qual todos fugiam com quantas forças tinham. Ela parecia uma aberração aos olhos de um comum cidadão, e definitivamente era uma terrível maldição para os supersticiosos: quem se aproximasse dela seria azarado para o resto da vida. Porém se alguém se desse ao trabalho de olhar bem para os olhos de Hoshiko, veria o seu brilho, as sombras de sonhos à espera de ser concretizados, de expectativas quebradas, de projectos arquitectados, e saberiam que ela não era só feita de contradições, maldições e anormalidades.

E os dias passavam-se assim: roubo, refugio, choro, roubo, refugio, choro, roubo, refugio, choro,... Numa rotina ininterrupta, cansativa e triste para Hoshiko.

Um dia, contudo, essa rotina foi quebrada pela chegada de um rapaz, pouco mais velho que ela, que utilizava pequenos bonecos para fazer um teatro de marionetas para crianças. Ele também como ela não tinha um sitio para viver, e em contrapartida demasiados sonhos para concretizar.

Então Hoshiko passou a incluir na sua rotina uma breve passagem diária pelo teatro de Kaito, que aos poucos se tornava mais famoso. Um dia, depois de muitos passados a admirar os movimentos daqueles pequenos bonecos, Hoshiko finalmente decidiu falar com Kaito, descobrindo que este procurava uma rapariga que voava e guardava o céu. Então ambos fizeram um pacto: ficariam juntos, lutariam pelos seus sonhos e objectivos juntos, mas teriam que se ajudar um ao outro.

Hoshiko finalmente começava a sentir que alguém a amava, que alguém se preocupava. Finalmente toda a vida parecia ter sentido, até quando dormia os sonhos mostravam-lhe sítios mais iluminados e cheios de esperança. Ela via o céu em sonhos, as nuvens, sentia a brisa cheia de amor para lhe dar e o Inverno dera lugar a uma Primavera linda. A vida estava a mudar! E passaram-se dias, semanas, até completar um mês desta maravilhosa sensação… Mas claro nem tinha sentido que Hoshiko tivesse um final tão bom, não é? Não numa história de vida, numa história em que existem coisas reais, sentimentos reais, …

Um dia, passado um mês e uma semana segundo as rigorosas contas da pequena estrela, Kaito havia desaparecido. Desaparecido… E por muito que procurasse não o encontrava e na sua opinião havia apenas uma razão para isso acontecer: Kaito abandonara-a. Abandonara-a assim como a sua mãe e o seu danna. Assim como o mundo, a vida e os sonhos haviam feito, Kaito abandonara-a. E nem ela ainda se tinha apercebido que havia sido para sempre…

Hoshiko caiu de joelhos no chão, as lágrimas a correrem-lhe e aquele momento pareceu-lhe uma eternidade. A única coisa que se lembra depois desse momento é de acordar numa cama de hospital com uma doença que aparentemente ninguém conhece, e que consequentemente não tem cura. Irónico, não?

Foi essa a segunda vez que me encontrei com Hoshiko. E foi quando ela me contou a sua história.

Ela era uma pequena rapariga, apesar da sua idade ela ainda parecia uma criança, os seus olhos reflectindo a sua esperança fútil. Ela era um anjo estendido naquela cama de onde me contava a sua história.

Um anjo de asas partidas, que mesmo de momentos depois de a vida ter desaparecido dos seus olhos, o brilho lá continuava, transmitindo esperança a mim e a quem quer que se importasse, e ignorando totalmente o facto de que Kaito nunca a abandonara, apenas morrera…

4 comentários:

Cate disse...

Danna: Patrão, homem que compra raparigas gueixa

Maiko: Aprendiz de gueixa

Hoshiko: Hoshi-estrela; ko-criança

Kaito: relativo ao céu (?)

Cate disse...

Correcção!

Kaito: kai-oceano, mar; to- voar, constelação Ursa Maior

Yukimura: yuki-neve; mura-vila

Anônimo disse...

esta lindo lindo :D muitos parabenss! Escreves tao bem Catarininha :D quando for grande vou todos os dias comprar um livro teu :p LOL beijinhoss adoro-tee vaquinha miuka :D Ines *

Anônimo disse...

a conhecida gueixa!
a conhecida estrela crianca!